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Revista oficial da Associação Brasileira de Alergia e Imunologia ASBAI
Revista oficial da Sociedad Latinoamericana de Alergia, Asma e Inmunología SLaai

Número Atual:  Janeiro-Fevereiro 2016 - Volume 4  - Número 1


RELATO DE CASO

Shiitake mal cozido e dermatite flagelada

Undercooked shiitake mushrooms and flagellate dermatitis

Gilmayara Alves Abreu Maciel Pereira, MD1; Leticia Arsie Contin, MD1; Leandro Fonseca Noriega, MD1; Marina Lino Vieira, MD1; Alexandre Ozores Michalany, MD2; Diego Leonardo Bet, MD1


DOI: 10.5935/2318-5015.20160005

1. Hospital do Servidor Público Municipal de Sao Paulo, Sao Paulo, SP
2. Universidade Santo Amaro - UNISA, Sao Paulo, SP


Endereço para correspondência:

Gilmayara A. A. M. Pereira
E-mail: gilmayara.abreu@hotmail.com


Submetido em 24/03/2016
Aceito em 5/12/2016
Nao foram declarados conflitos de interesse associados à publicaçao deste artigo.

RESUMO

O termo dermatite flagelada refere-se a lesoes apresentadas na pele, caracterizadas por pápulas eritematosas lineares, com aspecto de "chicotada". Shiitake é um cogumelo comestível que, quando ingerido cru ou mal cozido, pode induzir lesoes lineares pruriginosas, podendo estar associadas a sintomas sistêmicos. Relatamos um caso com manifestaçoes clínicas características e exame anatomopatológico que sugeriu eritema multiforme. A história clínica e exame físico foram fundamentais para a diferenciaçao das duas entidades.

Descritores: Cogumelos shiitake, dermatite, alimentos.




INTRODUÇAO

Dermatite flagelada é uma erupçao cutânea caracterizada por lesoes eritematosas em disposiçao linear, cujo aspecto remete à prática de autoflagelaçao observada na Idade Média1.

A dermatite provocada por bleomicina acarreta em hiperpigmentaçao linear da pele, descrita pela primeira vez por Moulin et al.2 em 1971 e denominada dermatite flagelada. É considerada um efeito colateral cutâneo da terapia com bleomicina3. Na patogênese, o mecanismo mais aceito seria a induçao das lesoes lineares pelo prurido. A pressao da "coçadura" levaria ao acúmulo local de bleomicina pelo extravasamento da droga dos vasos dilatados. Por consequência, as lesoes evoluiriam com hipercromia pós-inflamatória. Outras teorias incluem o aumento da estimulaçao hormonal adrenocorticotrópica e oncotaxia inflamatória3.

Os primeiros relatos de dermatite flagelada por shiitake (Lentinusedodes) foram feitos em 19774. Esse cogumelo é usado nas culinárias Japonesa e Chinesa e é o segundo cogumelo mais consumido do mundo3. Em geral, ocorre regressao espontânea das lesoes em poucos dias, ou após várias semanas3.

A dermatite flagelada por shiitake é uma reaçao tóxica ao lentinano, polissacarídeo termolábil presente nesses cogumelos5, que se torna inativo ao cozimento adequado. A patogenia completa ainda nao está esclarecida, podendo haver participaçao imune e nao-imune, com susceptibilidade do indivíduo envolvida. Sugere-se também que o lentinano atue via induçao de secreçao de interleucina-1 e outras citocinas inflamatórias, que levariam à vasodilataçao, hemorragia e erupçao cutânea, a qual geralmente ocorre em intervalo de dois a três dias depois da ingestao do shiitake cru ou mal cozido4.

Essa dermatose tem alta prevalência no Japao e na China devido aos hábitos alimentares dessas populaçoes6. A importância desse artigo está no consumo, em crescimento, de alimentos da culinária oriental pelos brasileiros.

 

RELATO DE CASO

Paciente masculino de 43 anos apresentando há três dias erupçao disseminada de pápulas eritematosas formando placas lineares pruriginosas. Sobre estas placas encontravam-se algumas vesículas e raras pústulas nos membros e tronco (Figuras 1 e 2). Associavam-se ao quadro edema na face à direita e petéquias nos membros inferiores. Sintomas sistêmicos como astenia e febre (nao aferida) foram relatados pelo paciente, que negava doença associada ou uso de novas medicaçoes. Quando questionado ativamente referiu consumo de cogumelo shiitake preparado no próprio domicílio três dias antes do início das lesoes. No hemograma, apresentou leucocitose com predomínio de segmentados e eosinofilia (> 500/mm3). O exame anatomopatológico de uma placa eritematosa com vesículas apresentou papilas dérmicas alargadas por edema e infiltrado inflamatório discreto, predominantemente linfocitário e perivascular, na derme superficial, com comprometimento segmentar da parede dos vasos, associado a extravasamento de eritrócitos e raros eosinófilos. O paciente foi medicado com corticosteroide tópico de baixa potência e anti-histamínico sedativo noturno (hidroxizina), com remissao completa das lesoes após 15 dias do início do quadro.

 


Figura 1 - Pápulas eritematosas formando placa linear no antebraço esquerdo

 

 


Figura 2 - Lesoes lineares, em "chicotada", no dorso e membros superiores

 

DISCUSSAO

Houve remissao das lesoes em 2 semanas, tempo de doença que condiz com casos relatados anteriormente, em que o eritema flagelado produzido pelo cogumelo shiitake teve resoluçao espontânea dentro de 1-3 semanas7,8. No quadro clínico da dermatite flagelada por shiitake, as lesoes sao localizadas principalmente no tronco, extremidades e nuca4,9. Neste relato, as topografias mais acometidas incluiram também tronco e membros.

Eventualmente, petéquias estao associadas com intenso prurido, e a açao de coçadura e fenômeno de Koebner levam a um agrupamento linear dessas pápulas6. Com relaçao a sintomas sistêmicos, em uma série de 15 casos descritos na França, os pacientes apresentavam intenso prurido e alguns manifestaram edema local, diarreia e pico febril10. O paciente relatado apresentava prurido, história de febre nao aferida, e, ao exame físico, pápulas de disposiçao linear e petéquias nos membros inferiores.

A exposiçao ao sol poderia agravar o exantema e o prurido, sugerindo mecanismo de fotossensibilidade, mencionado por alguns autores10. O paciente foi exposto à radiaçao UV poucos dias após o exantema, o que poderia justificar a apresentaçao clínica exuberante.

De acordo com a literatura revisada1,4,6,7, na histopatologia, os achados sao inespecíficos, incluindo: edema da derme papilar, derme com infiltrado linfomononucear perivascular e polimorfonucleares. A epiderme pode apresentar espongiose. A histologia deste caso sugeriu eritema multiforme, mas nao afasta a possibilidade de uma reaçao tóxica, principalmente diante da presença dos eosinófilos, porém a anamnese e exame clínico serviram para excluir as lesoes de etiologia medicamentosa ou viral. O diagnóstico da dermatite flagelada é feito baseado na história clínica e exame físico11.

Nos achados laboratoriais, com pequena frequência, pode haver alteraçao de transaminases, leucocitose ou leucopenia, eosinofilia e aumento de LDH1. Leucocitose e eosinofilia foram vistos nos exames laboratoriais do paciente deste relato. Dentro do diagnóstico diferencial estao: dermatite fototóxica ou fotoalérgica e dermatite de contato. O tratamento é feito apenas com sintomáticos, já que o quadro é autolimitado. Neste caso, optou-se por tratamento local com corticosteroide tópico e anti-histamínico oral.

Diante da disseminaçao da culinária oriental no nosso meio devemos estar atentos a essa possibilidade diagnóstica e orientar a populaçao quanto à necessidade de cozimento adequado desse cogumelo. O paciente havia feito preparo domiciliar do shiitake e a temperatura pode nao ter sido suficiente para inativar o lentinano, causador da dermatose. O cozimento adequado para reduçao dos seus efeitos imunogênicos deve chegar à temperatura de 130-145 °C5. O paciente fez reexposiçao alimentar por conta própria após a orientaçao adequada e nao apresentou novas lesoes.

 

REFERENCIAS

1. Mendonça CN, Silva PM, Avelleira JC, Nishimori FS, Cassia F de F. Shiitake dermatitis. An Bras Dermatol. 2015;90:276-8.

2. Dantizg PI. Immunosupressive and cytotoxic drugs in dermatology. Arch Dermatol. 1974;110:393-406.

3. Czarnecka AB, Kreft B, Marsch WCh. Flagellate dermatitis after consumption of Shiitake mushrooms. Postepy Dermatol Alergol. 2014;31:187-90.

4. Nakamura T. Shiitake (Lentinusedodes) dermatitis. Contact Dermatitis. 1992;27:65-70.

5. Ade R, Sukut C, Wiser HJ, Shockman S, Buescher L. Shiitake dermatitis demonstrating Köebner phenomenon. Int J Dermatol. 2015;54:e179‑81.

6. Adriano AR, Acosta ML, Azulay DR, Quiroz CD, Talarico SR. Shiitake dermatitis: the first case reported in Brazil. An Bras Dermatol. 2013;88:417-9.

7. Lippert U, Martin V, Schwertfeger C, Junghans V, Ellinghaus B, Fuchs T. Shiitake dermatitis. Br J Dermatol. 2003;148:178-9.

8. Scheiba N, Andrulis M, Helmbold P. Treatment of shiitake dermatitis by balneo PUVA therapy. J Am Acad Dermatol. 2011;65:453-5.

9. Wagner G, Sachse MM. [Linear grouped erythema and papule sontheupper trunk and décolleté. Shiitake dermatitis]. J Dtsch Dermatol Ges. 2011;9:555-7.

10. Boels D, Landreau A, Bruneau C, Garnier R, Pulce C, Labadie M, et al. Shiitake dermatitis recorded by French Poison Control Centers - new case series with clinical observations. Clin Toxicol (Phila). 2014;52:625-8.

11. Wang AS, Barr KL, Jagdeo J. Shiitake mushroom-induced flagellate erythema: a striking case and review of the literature. Dermatol Online J. 2013;19(4):5.

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